O NASCER DE UM PATRONO
Nos lugares mais entranhados, distantes dos grandes centros e das reconhecidas universidades, quando menos se espera, viceja um coração apaixonado. Às vezes ele nasce no meio de uma aula, na leitura de um poema, uma tese, uma simples frase exuberante, ou mesmo fria e contundente, capaz, entretanto, de engrandecer um pensamento. Assim é o poder das palavras, de amolecer rochas, de derreter geleiras, de desintegrar metais pesados. Encantar-nos parece uma tarefa mais simples diante disso. Uma só palavra impensada condenada e uma precisa absolve. Embeleza a vida, as histórias, as causas, até mesmo aquelas antipáticas. É um instrumento cirúrgico, que bem usado salva, quando não, corta desavisadamente uma artéria, ou dilacera a alma. Nela está o condão de dar graça, enterrar e exumar. De encastelar e desconstruir. Mas elas são dependentes, servas de um artesão, um senhorio que as mantêm sob seu cuidado, sempre regadas, prontas para colher, como num pomar no fundo do lar. Elas despertam no seu possuidor um estilo, uma devoção, uma paixão, um amor, que escraviza o seu dono, aquele que cultua o saber e se nutre com as ideias alheias, fazendo florescer dentro de si outras novas, que seguirão o seu destino precípuo de recriação, depois de novamente reveladas ao mundo com outros contornos, sabores, ângulos, texturas e tessitura. Nessa inerência delicada das palavras e dos pensamentos se insere o devoto, onde passa a se deleitar como um garoto da terra que se lambuza displicente com uma manga arrancada do pé. Pronto. Está aí. É nesse exato momento íntimo do defloramento mental que o patrono começa sua metamorfose deslumbrante. Daquele prosaico espermatozóide - nomenclatura emprestada do epitáfio de Chico Sombração -, viramo-nos um defensor de ideias, de pessoas e coisas, das emoções, do que é palpável e também intangível, do portentoso ao infame, do substituível ao infungível, da maioria e da minoria, de um só indivíduo ou ainda de só um pedaço dele. As palavras se transformam em armaduras, elmos e espadas à serviço do objeto que se advoga. Elas, as palavras, são as verdadeiras protagonistas, tanto que há diversas construções brilhantes sem dono que vagam ao redor do mundo anonimamente. Ficamos merecidamente, apenas, com a assinatura, uma pequena parcela da honra por colocá-las no seu devido lugar, a única parte de nos que é possível se eternizar: a obra, a qual, depois da sua conclusão, passa a ter vida própria, secundarizando-nos, só porque, diferente dela, destinada ao desfile atemporal, estamos fadados a ocupar algum espaço num vaso ou num jardim bucólico de lembranças. Enfim, gosto de conceituar o elevado múnus de advogar como sendo o ponto de intersecção e das confluências entre a arte, a poesia, o direito, com pitadas colossais de abnegação e a persistência. Quem jamais despertou interesse para alguma dessas belezas da existência decerto estará fadado à inquietação e ao tormento, porque lidará com o conflito dos outros, em regra angustiante, pesado, lacerante, e essa será a sua matéria-prima por toda a vida, e, o seu produto manufaturado, a solução, com o propósito salutar de devolver a paz e a esperança ao indivíduo. É quase uma espécie de aconselhamento transcendente, que acalenta e cura os enfermos d’alma, uma atividade decentralizada em nome das divindades, que lhe outorga poderes supremos pré-destinados. Por isso, divirjo e repilo qualquer ensaio tendente a justificar que o direito seria um apêndice da ciência econômica ou um fenômeno social inexplicável, pois sua função primária, senão exclusiva, é humana. Advogar, essencialmente e na sua inteireza, não é cumprir agenda, os prazos, é fazer esmerado, exemplar, para vencer e convencer, jamais sucumbir, sequer esmorecer. Jamais se curvar durante uma luta por ausência de força. Se titubear em desacreditar na causa que lhe foi confiada, rejeite-a imediatamente, pois ela e muitos afetados dependerão de você, e você iniciou uma catástrofe para o direito de alguém. O encargo de defender alguém é tal ordem retributivo que engrandece, amadurece, eleva a visão de mundo, aprimora a compreensão da própria existência e do universo. Confere ferramentas designadas a resolver os conflitos internos e emudecer qualquer mal que possa pretender rasteiramente hospedar em nosso espírito. Ainda me lembro cada uma das vezes que deslumbrei-me com o brilho cintilante das profissões afetas ao direito, e lembro também de todas as vezes que ainda fico. Fascino-me até com a admiração que é despertada nos novatos pelo talento alheio e a capacidade de alguns poucos mestres ainda vivos, que tanto sabem e não só das leis, mas de todas as ciências convergentes. Uma visão completa, panorâmica, macro e ao mesmo tempo com a profundidade necessária e uma precisão nano. A proliferação dessa epidemia se assemelha às safras raras. A cada mil, talvez uma vida incandesce e predestina-se ao exercício da fulgurante advocacia, que vocês passam a integrar. Sejam bem-vindo ao grupo cíclico de admiradores e admirados da Ordem dos Advogados.
(discurso proferido na conclusão do curso de oratória do Prof. Acácio Garcia em Florianópolis-SC).